Agora
que você já me conhece, pelo menos o que precisa saber, ficará mais fácil
seguir com essa narrativa. Sou Augusto T. – e esse bendito T provavelmente
permanecerá um mistério, sendo assim, não perca tempo com pesquisas e afins.
Deixe-se levar pelo desconhecido. De nada vale uma grande história se entregue
de cara nos primeiros parágrafos. Vamos com calma, temos muito que saborear.
Pense nisso como uma bela refeição de domingo. Óbvio que para alguém como eu
isso se resumiria a puro sangue, como em qualquer outro dia da semana. Mas para
você, caro leitor, certamente fará algum sentido.
Vamos
ao que interessa. Minha historinha. Meu suculento relato. A comida está na
mesa, sente e sirva-se. Apenas cuide para não engasgar, nem todos tem o dom de
sobreviver a tudo.
Definitivamente
era uma noite daquelas. Chuva, muita chuva. Toda aquela água transformando ruas
em grandes pátios esburacados e lamacentos. Não houvera uma noite calma há
dias. Apenas a chuva tomando conta de cada canto, como se o planeta estivesse
mergulhado no mais obscuro apocalipse. Andava sem pressa alguma por uma viela
qualquer. Não buscava eu nada em particular. Deixava a chuva encharcar meu
paletó preto e longo, enquanto meus cabelos tomavam conta de meu rosto.
Acredito que andava mais por intuição à qualquer outro sentido possível.
Entenda o seguinte. Quando não há rota pré-estabelecida, não há frustrações. O
que encontrar fará sentido, ou não. É um risco demasiado intenso e agradável.
Perambular, deixar o tempo passar como se este nada significasse – mesmo que de
fato nada signifique para um vampiro.
O
fato é que nesse perambular sórdido ouvi algo o qual muito me chamou atenção. A
música criada por um piano no alto de um dos prédios imundos, que mais jazia
que existia. Parei por alguns segundos, tentando desvendar a melodia agressiva.
As teclas me pareceram gritar por socorro, tal era a voracidade do ritmo.
Fiquei encantado, deslumbrado e, acima de tudo, intrigado. O instinto me dizia
para me afastar, enquanto minhas pernas já caminhavam em direção ao som. Se há
algo que realmente gostos nesses prédios moribundos, é a facilidade da
escalada. Seria como subir uma escada. E assim o fiz até o último andar.
Do
vidro embaçado, daquela janela enferrujada, a vi pela primeira vez. Minha
adorada. Chorava como criança. A cabeleira loira espalhava-se no ar
acompanhando o vai e vem da cabeça enlouquecida. As mãos tocavam as teclas com
tanta firmeza que me pareceu o piano feito de aço, para aguentar tamanha
revolta – isso sim era algo a ser presenciado, não merecia o anonimato advindo
daquele cubículo mal mobiliado e pessimamente decorado. Permaneci ali até a
última nota esplendidamente finalizada. Quando terminou, ela permaneceu ali.
Não havia soluções, sons em seu choro. Lágrimas, apenas lágrimas. Respirava com
dificuldade, havia se entregue a música com todas as forças. Mal consigo
descrever meu fascínio. Desejei possuí-la naquele mesmo instante. Tê-la em meus
braços, num abraço apertado, sentindo seu cheiro, imaginando seu gosto antes do
gole demoníaco. Senti seu sangue pulsante, o coração acelerado, mesclados com a
tristeza absurdamente estampada na cara. Aquela criaturinha indefesa, não
poderia imaginar estar sendo observada pelo monstro de mármore.
Deixei-a.
Assim como ela, estava deliciado. O que ali busquei, encontrei e me esbaldei –
por hora. A chuva tornara-se ainda mais convidativa, prazerosa. Voltei para meu
refúgio com um sorriso de moleque. Uma felicidade plena, misturada a inquietude
do mistério em si. Ela se tornou meu mistério, meu objetivo, minha sina.
As
noites que se seguiram de nada valem. Visitei Ana algumas vezes mais, depois me
mantive afastado por um. Sabia o risco de uma paixão nesse momento e não estava
disposto a enfrentá-lo. Para um vampiro, tudo está elevado à vigésima potência.
Não há meios termos, não há limite. Vivemos a beira do penhasco a cada noite
transpassada.
E
agora estas a se perguntar se pararei por aqui e lhe deixarei a mercê da
espera. Não, de fato não tenho esse intuito, preciso apenas de uma breve pausa.
Sou feito de etapas, vivo por partes, prefiro assim. O todo me irrita, me
desagrada ao ponto da histeria. Ainda assim preciso escrever mais. Estou aqui
tentando me livrar de algo que me incomoda. Algo que me faz lamentar minha
própria existência. Entenda que ao ver Ana pela primeira vez, não pude entender
o quanto isso me afetaria. O quando isso alteraria minha forma de encarar
qualquer sentimento advindo de um mortal.
Mas
continuemos. O sol ainda está longe de nascer.
Enfim, continuando. Não resisti, voltei até ela como um rato
retorna assustado à toca. Lá estava novamente tocando, no mesmo horário de
sempre, na mesma fúria. Mas desta vez algo aconteceu. Enquanto permanecia ali,
em silêncio, ela parou abruptamente de tocar.
- Você vai continuar aí fora ou vai entrar de uma vez? - Não se
moveu enquanto falava - Por favor, não me faça levantar e abrir a janela. Sei
que tem força mais que suficiente para isso.
Fui pego de surpresa. Nesse instante eu fui quem permaneceu imóvel,
estupefato. Que rumo deveria tomar? Há tempos não sabia o que era falar com um
humano, ao menos sem o intuito de me alimentar dele. Sabia ela o que eu
realmente era? O que quis dizer com força mais que suficiente? Uma névoa
espessa anuviava meus pensamentos. Estava literalmente em choque. Foi quando
ela se virou e pela primeira vez vi seu rosto a me encarar. Lindamente mal
cuidada é o que melhor poderia lhe definir. Olhos azuis, boca pequena e magras
bochechas. Um rosto quase limpo, ou quase sujo. A expressão doentia da dor
demarcada em cada traço, em cada linha. Os cabelos, como de costume, não
penteados, emaranhados e livres de qualquer refinamento. Uma mulher, de fato,
curiosa.
- Vamos vampiro, entre, não tenho a noite toda.
Nunca havia sido reconhecido. Alias, isso é algo que jamais me
ocorreu poder acontecer. Aquela humana me tinha de quatro. Não consegui fugir.
O mistério envolto em Ana era maior que qualquer coisa que já ousara sentir.
Deixei-me levar pelo momento. Dei-me ao luxo de não usar disfarces e assim,
finalmente, abri a janela sem qualquer esforço. Entrei.
- Como soube? Havia quase uma suplica em minha pergunta. Senti-me
um menino enfrentando a mãe enfurecida.
- Não podemos começar por aí. Que tal parar de pensar besteiras e
se concentrar no que realmente importa? - veio em minha direção a passos lentos
- Uhm! Então é assim que vocês são.
O que se seguiu foi um breve momento de silêncio. Pairava sobre mim
a dor da vulnerabilidade. Porém, não estava disposto a fugir, afinal o que uma
humana, por mais intrigante que o seja, poderia fazer contra um vampiro de mais
de 100 anos? Nada. Aquela altura tudo que me parecia familiar sumiu. Virei um
boneco de voodu sendo espetado por agulhas traiçoeiras.
- E por onde deveríamos começar minha cara? - Tomei fôlego, ganhei
corpo. Minha voz parara de tremer, enquanto minha postura de erguia.
- O mais importante seria: por que demorou tanto? - sentou-se no
sofá revestido por um pedaço de pano esburacado e tristemente cinza – Sim, eu
sei, não está entendendo nada. Em nosso primeiro encontro ficou evidente sua
falta de atitude, por isso já esperava ter que tomar as rédeas agora.
Nosso primeiro encontro? Poderia não ter certeza de muita coisa
naquela hora, mas de algo eu sabia, nunca, jamais havia falado com aquela mulher
– nem em vida e muito menos na morte. Fiquei em silêncio e aguardei que
continuasse.
- Deveria sentar. Não há respostas rápidas. Na verdade, há mais
perguntas que respostas. De fato entenderá, aos poucos, que estou tão perdida quanto
você nessa história toda.
- Há tempos você me aparece enquanto durmo. Em sonhos? eu creio
que não. É algo maior, muito mais especifico que um mero devaneio. Durante
estas passagens sinto claramente o tempo, o frio, o calor, teu corpo,
absolutamente tudo. E ao voltar nada se apaga e ainda, há sempre uma
continuidade. A questão é: desde que isso começou a paz me abandonou e deu
lugar a agonia incessante.
A vontade foi gargalhar. Idiota em pensar que aquilo tudo poderia
significar alguma coisa. Abstive-me das risadas por mera educação. Daquele
momento em diante sabia que não demoraria a hora de minha partida sem retorno,
para longe dela, se iniciar. Quando fiz menção em falar Ana fez sinal para que
me calasse. Foi até mim e me abraçou. Meus braços hesitaram em envolvê-la, mas
logo se renderam. O cheiro de suor me invadiu.
Fiquei tonto com o calor daquele corpo contra o meu. Largou-me e olhando em
meus olhos falou:
- ria se quiser. Mas isso de nada mudará os fatos.
Não pude aguentar mais. Empurrei Ana para o sofá e ali a deixei. E
tão rápido quanto poderia um vampiro, ganhei a rua. Aquilo tudo foi absurdo
demais para uma única noite. Precisei me afastar e colocar minha cabeça em
ordem – sem aquele cheiro, sem aquele coração barulhento. Ela me intrigou. Ela
me teve em seus braços e certamente, muito mais me teria.